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O Planetinha

Fumaça verde me entrando pelas narinas e um coro desafinado fazia uma base melódica.

nos confins da galáxia havia um planetinha isolado. Era um planeta feliz.

O homem vestido de mago começava a aparecer por detrás da fumaça verde.

O planetinha recebeu três presentes, mas o seu habitante, o homem, estava num estado de confusão tão grande que ameaçava estragá-los. Os homens já havia escravizado o primeiro presente, a vida; lutavam contra o segundo presente, a morte; e havia alguns que achavam que deviam destruir totalmente o terceiro, o amor, e com isto levar a desordem total ao pobre planetinha perdido, que se chamava Terra.

O coro desafinado entrou antes do “Terra” cantando várias vezes, como se imitasse um eco, “terra-terra-terraaa”. Depois de uma pausa dramática, o homem vestido de mago voltou a falar.

Terra, nossa nave mãe.

Neste momento eu me afastei. À frente do palco onde o mago e seu coral faziam apelos à multidão havia vários estandes cobertos com a tradicional armação de quatro pernas e lona branca. Em todos os cantos da praça havia gente, gente dos mais variados tipos. Visitantes curiosos que se aproximavam atraídos pela fumaça verde e as barraquinhas, gente que aproveitava o movimento para vender doces sem pagar imposto, casais que se abraçavam de pé para espantar o frio, os tradicionais corredores que faziam seu cooper, gente cheia de barba e vestida para imitar os hippies dos anos 60 e vender colares estendidos no chão, transeuntes novos e velhos, vestidos como baladeiros ou como ativistas do ônibus grátis, grupos de ciclistas entusiastas.

O mago fazia agora apelos para que nós, os homens, habitantes do isolado planetinha, passássemos a ver o planetinha, nossa nave mãe, como um todo, e adquiríssemos a consciência de que ele estava entrando em maus lençóis. A idéia, reforçada pela logomarca do evento, era que parássemos de olhar só para a nossa vida e pensássemos no planeta.

A logomarca do evento, um desenho estilizado do planeta Terra, nada tinha a ver com seu nome: “Festival Andando de Bem com a Vida”, mas havia sido ali colocada estrategicamente pelos organizadores, de quem parecia justamente sair a mensagem dita pelo mago.

Aquela multidão de pessoas que, assim como eu, tinham suas próprias preocupações, não podiam ver o quadro caótico que formavam, cada uma com seus atos isolados, ali naquela praça isolada, naquele planeta isolado. Quando o hippie barbudo, quase um Osho, assustava um casal para tentar vender-lhes um colar, a quantidade de caos que isto acrescentava à cena era gigantesca. Por um segundo, pude ver, como se estivesse de longe e acima, com toda a pretensão que este estado imaginativo carrega, a cena completa do caos.


Uma nave-mãe, dessas de ficção científica, habitada por milhões de pessoas, seguia no espaço sem rumo, e sem saber que logo à frente um longo precipício espacial a esperava, para a desgraça completa sua e de seus habitantes.

Acostumados àquela nave tanto quanto outrora estiveram acostumados à sua terra natal, os homens viviam as próprias vidas sem nem se lembrar que estavam vagando pelo espaço. Ninguém sabia quem estava conduzindo a nave, e ninguém se importava.

No final do filme descobre-se que era a soma completa do caos que cada habitante produzia, com seus gestos egoístas e incapazes de levar em conta a totalidade, é que determinava a direção da nave-mãe. O efeito, no entanto, não era imediato, como nunca é. Havia gente de verdade encarregada de conduzir a nave, mas era uma gente bêbada, mau-caráter, que vivia brigando pelo controle da nave e o poder que isto lhes dava. Poder, status, dinheiro!

Essa gente bêbada era atraída até ali pela corrupção das instituições e da moral comum que, no fundo no fundo, era causada pelo egoísmo da população, através de um complexo – mas que no filme aparece simplificado pela ação individual de um magnata do divertimento público – processo social.

O homem vestido de mago era mais um agente causador de caos, com sua cena cheia de fumaça e sua roupa estroboscópica, ele achava que estava fazendo o bem ao alertar sua platéia, todos as sextas-feiras, de que havia algo que precisava ser feito, que cada um que estava ali ouvindo era responsável pelo planeta. A sua incapacidade, porém, de explicar o que precisava ser feito só aumentava a angústia geral; a culpa que ele jogava sobre seu público, e que era prontamente aceita e passada em frente, aos familiares e amigos de cada um, atormentava-os diariamente e os impedia de ter uma vida decente no trabalho e em casa. As famílias, estressadas, estavam constantemente brigando e os motivos mais insignificantes eram responsáveis pelas mais horrendas conseqüências.

O mago, que após o show tirava o chapéu entortado e ia tomar cerveja num boteco, era responsável por uma parcela considerável do caos que levava a nave na direção do seu desgraçado fim. No filme, porém, um dos transeuntes que de passagem ouviu um pedaço do discurso do mago despertou em si mesmo uma consiência transformadora e, com poderes sobre-humanos que lhe foram então concedidos por uma ordem iniciática do bem ou não, usando só os seus poderes humanos mesmo, o transeunte – na primeira versão do filme um homem, na segunda uma mulher – consegue consertar as instituições e retirar os bêbados da condução da máquina. A questão da moral pública é ignorada para abreviar a trama, já com duas horas e quarenta de duração, mas subentende-se que ela também fora resolvida.


No planeta Terra real, que não está indo em direção alguma, preso pela gravidade ao Sol, e onde as pessoas vivem a própria vida porque lhes é impossível viver a dos outros, não têm uma consciência global de nada porque só é possível mesmo ter a consciência delas mesmas, e onde a maioria, de uma maneira ou de outra, está tentando como pode, fazer as coisas direito, o filme é exibido.

Para a maioria dos espectadores, é um filme que evoca reflexões, um filme forte. Por um segundo elas têm o mesmo vislumbre do caos generalizado que eu tive ali naquela praça. Para uma pequena parcela dos espectadores – entre eles alguns dos que estavam na platéia do mago, o próprio mago, o seguidor do Osho, o casal de duas mulheres e o vendedor de brigadeiros, mas aos quais se somam também críticos de televisão e jornal e gente que fala pelos cotovelos na internet – o filme é um horror, o filme é uma vulgarização de um problema real e sério, o filme apela para a figura do herói salvador e passa uma mensagem totalmente errada, de que a maioria da população pode continuar vivendo as suas própria vidinhas miseráveis enquanto espera por um herói que vem do Olimpo e os salva da mixórdia que eles mesmos causaram, é um filme que presta um enorme desserviço à causa.

No dia seguinte ao lançamento, num bar meio caro ali perto da praça, numa mesa com oito pessoas, entre elas seis do primeiro grupo e oito do segundo, discute-se se o filme levará ou não o Oscar. Eu estou em casa dormindo e não escuto nada.

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