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O Bitcoin como um sistema social humano

Afinal de contas, o que é o Bitcoin? Não vou responder a essa pergunta explicando o que é uma “blockchain” ou coisa que o valha, como todos fazem muito pessimamente. A melhor explicação em português que eu já vi está aqui, mas mesmo assim qualquer explicação jamais será definitiva.

A explicação apenas do protocolo, do que faz um programa bitcoind sendo executado em um computador e como ele se comunica com outros em outros computadores, e os incentivos que estão em jogo para garantir com razoável probabilidade que se chegará a um consenso sobre quem é dono de qual parte de qual transação, apesar de não ser complicada demais, exigirá do iniciante que seja compreendida muitas vezes antes que ele se possa se sentir confortável para dizer que entende um pouco.

E essa parte técnica, apesar de ter sido o insight fundamental que gerou o evento miraculoso chamado Bitcoin, não é a parte mais importante, hoje. Se fosse, várias dessas outras moedas seriam concorrentes do Bitcoin, mas não são, e jamais poderão ser, porque elas não estão nem próximas de ter os outros elementos que compõem o Bitcoin. São eles:

  1. A estrutura

O Bitcoin é um sistema composto de partes independentes.

Existem programadores que trabalham no protocolo e aplicações, e dia após dia novos programadores chegam e outros saem, e eles trabalham às vezes em conjunto, às vezes sem que um se dê conta do outro, às vezes por conta própria, às vezes pagos por empresas interessadas.

Existem os usuários que realizam validação completa, isto é, estão rodando algum programa do Bitcoin e contribuindo para a difusão dos blocos, das transações, rejeitando usuários malignos e evitando ataques de mineradores mal-intencionados.

Existem os poupadores, acumuladores ou os proprietários de bitcoins, que conhecem as possibilidades que o mundo reserva para o Bitcoin, esperam o dia em que o padrão-Bitcoin será uma realidade mundial e por isso mesmo atributem aos seus bitcoins valores muito mais altos do que os preços atuais de mercado, agarrando-se a eles.

Especuladores de “criptomoedas” não fazem parte desse sistema, nem tampouco empresas que aceitam pagamento em bitcoins para imediatamente venderem tudo em troca de dinheiro estatal, e menos ainda gente que usa bitcoins e a própria marca Bitcoin para aplicar seus golpes e coisas parecidas.

  1. A cultura

Mencionei que há empresas que pagam programadores para trabalharem no código aberto do BitcoinCore ou de outros programas relacionados à rede Bitcoin – ou mesmo em aplicações não necessariamente ligadas à camada fundamental do protocolo. Nenhuma dessas empresas interessadas, porém, controla o Bitcoin, e isso é o elemento principal da cultura do Bitcoin.

O propósito do Bitcoin sempre foi ser uma rede aberta, sem chefes, sem política envolvida, sem necessidade de pedir autorização para participar. O fato do próprio Satoshi Nakamoto ter voluntariamente desaparecido das discussões foi fundamental para que o Bitcoin não fosse visto como um sistema dependente dele ou que ele fosse entendido como o chefe. Em outras “criptomoedas” nada disso aconteceu. O chefe supremo do Ethereum continua por aí mandando e desmandando e inventando novos elementos para o protocolo que são automaticamente aceitos por toda a comunidade, o mesmo vale para o Zcash, EOS, Ripple, Litecoin e até mesmo para o Bitcoin Cash. Pior ainda: Satoshi Nakamoto saiu sem nenhum dinheiro, nunca mexeu nos milhares de bitcoins que ele gerou nos primeiros blocos – enquanto os líderes dessas porcarias supramencionadas cobraram uma fortuna pelo direito de uso dos seus primeiros usuários ou estão aí a até hoje receber dividendos.

Tudo isso e mais outras coisas – a mentalidade anti-estatal e entusiasta de sistemas p2p abertos dos membros mais proeminentes da comunidade, por exemplo – faz com que um ar de liberdade e suspeito de tentativas de centralização da moeda sejam percebidos e execrados.

  1. A história

A noção de que o Bitcoin não pode ser controlado por ninguém passou em 2017 por dois testes e saiu deles muito reforçada: o primeiro foi a divisão entre Bitcoin (BTC) e Bitcoin Cash (BCH), uma obra de engenharia social que teve um sucesso mediano em roubar parte da marca e dos usuários do verdadeiro Bitcoin e depois a tentativa de tomada por completo do Bitcoin promovida por mais ou menos as mesmas partes interessadas chamada SegWit2x, que fracassou por completo, mas não sem antes atrapalhar e difundir mentiras para todos os lados. Esses dois fracassos provaram que o Bitcoin, mesmo sendo uma comunidade desorganizada, sem líderes claros, está imune à captura por grupos interessados, o que é mais um milagre – ou, como dizem, um ponto de Schelling.

Esse período crucial na história do Bitcoin fez com ficasse claro que hard-forks são essencialmente incompatíveis com a natureza do protocolo, de modo que no futuro não haverá a possibilidade de uma sugestão como a de imprimir mais bitcoins do que o que estava programado sejam levadas a sério (mas, claro, sempre há a possibilidade da cultura toda se perder, as pessoas esquecerem a história e o Bitcoin ser cooptado, eis a importância da auto-educação e da difusão desses princípios).

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